quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Para saber onde pisamos: um pouco da história do euro

Terminei, depois de longos três meses (dois, descontando minhas férias), o enciclopédico Pós-Guerra, do Tony Judt. É o terceiro livro dele que leio; a essa altura, já estou quase me declarando social-democrata e lamentando a falta que ele faz no debate sobre um cenário tão nebuloso para a Europa. Esses, porém, são temas para outros textos. Aqui, quero colocar um trecho no qual ele explica o contexto histórico que desembocou no euro. Segundo consta, Judt desprezava a idéia de que a história pode servir como um guia para o futuro, mas validava a tese de George Santayana de como é importante aprender história para não repetir erros do passado. Com a palavra, mr Judt:

(...) ao longo dos anos 70, um número crescente de políticos passou a crer que a inflação agora impunha riscos maiores do que os altos níveis de desemprego - especialmente porque os custos humanos e políticos do desemprego eram institucionalmente aliviados. Não era possível tratar a inflação sem alguma espécie de esquema internacional que visasse a regulação de moedas e taxas de câmbio, em substituição ao sistema de Bretton Woods, prematuramente derrubado por Washington. Em 1972, os seis primeiros Estados membros da Comunidade Econômica Européia já responderam à situação com a criação do "Serpente Dentro do Túnel": um acordo para manter a taxa de câmbio de suas moedas semifixadas dentro de determinado valor, permitindo variações de 2,25% para cima ou para baixo da taxa aprovada. Contando com a adesão inicial da Grã-Bretanha, Irlanda e dos países escandinavos, o acordo durou apenas dois anos: os governos britânico, irlandês e italiano - incapazes de resistir (ou não querendo fazê-lo) a pressões domésticas por desvalorizações monetárias além dos índices estabelecidos - foram obrigados a desistir do acordo e permitir a queda de suas moedas. Até os franceses, em duas ocasiões (em 1974 e 1976) tiveram de abandonar o "Serpente". Era evidente que algo mais seria necessário.
Em 1978, o chanceler da Alemanha Ocidental, Helmut Schmidt, propôs a reformulação do acordo em termos bem mais rigorosos: um Sistema Monetário Europeu (SME). Seria criado um esquema de taxas de câmbio bilaterais fixas, baseado numa unidade de medida meramente teórica, a Unidade Monetária Européia*, e garantido pela estabilidade e pelas prioridades antiinflacionárias da economia alemã e do Bundesbank. Os países participantes se comprometeriam a adotar uma austeridade econômica doméstica para se manterem no SME. Foi a primeira inciativa alemã nesse sentido, e traduzia, oficiosa senão oficialmente, a recomendação de que, ao menos na Europa, o marco alemão deveria substituir o dólar enquanto moeda de referência.
Alguns países ficaram de fora - notadamente o Reino Unido, cujo primeiro ministro trabalhista, James Callaghan, percebeu que o SME impediria a Grã-Bretanha de adotar políticas de reflação capazes de fazer frente ao problema de desemprego no país. Outros países adotaram o sistema precisamente por esse motivo. Enquanto "solution de rigueur", o SME teria um funcionamento semelhante ao Fundo Monetário Internacional (ou à Comissão Européia e o euro, anos mais tarde): o sistema obrigaria os países a tomar medidas impopulares cuja responsabilidade poderia ser imputada a regras e tratados formulados no exterior. Na realidade, a longo prazo, essa seria a verdadeira relevância dos novos acordos. Não era tanto o fato de eles terem conseguido expulsar o demônio da inflação, mas o fato de que, para realizar tal façanha, os novos acordos terem privado os governos de inciativa em relação à política doméstica.
Isso constituiu uma grande guinada, com consequências maiores do que se pensou à época. No passado, se um governo optasse por uma estratégia de "dinheiro duro", aderindo ao padrão-ouro ou recusando-se a diminuir as taxas de juros, era obrigado a responder ao eleitorado local. Mas, dadas as circunstâncias do final dos anos 70, qualquer governo - em Londres, Estocolmo ou Roma - que enfrentasse persistentes índices de desemprego, um setor industrial decadente ou presão para inflacionar os salários podia invocar os termos de um empréstimo contraído junto ao FMI, ou os rigores de taxas de câmbio pré-negociadas no âmbito europeu, e se eximir de responsabilidade. Os benefícios táticos desse tipo de medida eram óbvios, mas haveria um custo.
(...)
O impulso que estava por trás das ações franco-germânicas nos anos 70 era a ansiedade econômica. A economia européia crescia lentamente (ou simplesmente não crescia), a inflação era endêmica e a incerteza decorrente do colapso do sistema de Bretton Woods resultava em taxas de câmbio voláteis e imprevisíveis. O sistema "serpente", o SME e o ecu eram uma espécie de paliativo para o problema (por serem soluções regionais, e não internacionais) e introduziam o marco alemão, em vez do dólar norte-americano, como moeda de referência para banqueiros e mercados europeus. Alguns anos mais tarde, a substituição das moedas nacionais pelo euro, apesar das implicações simbolicamente problemáticas da medida, foi a consquência lógica. O surgimento de uma única moeda européia decorreu, portanto, de uma reação pragmática a problemas econômicos, e não de uma estratégia calculada e posta em prática em nome de um objetivo europeu predeterminado.
* Em inglês, "European Currency Unit" - ECU. O acrônimo tinha emprego marcantemente político: ao invocar o nome de uma moeda de prata francesa corrente no século XVIII, a palavra diminuía o constrangimento parisiense diante do reconhecimento da crescente primazia da Alemanha Ocidental em questões européias.

Algumas possíveis lições:

- O euro pode ser visto como o último legado de Bretton Woods, como a âncora que alguns países precisavam (pela falta de controle das finanças ou qualquer outro motivo) para ajudar no controle da inflação, depois do fim da paridade do dólar americano com o ouro. Tomavam-se emprestadas as credenciais do Bundesbank e o problema de credibilidade da moeda estava resolvido.  Em um cenário onde inflação não é problema, porém, essa função deixa de ser primordial. Talvez esse seja o caso agora: as economias periféricas, deprimidas, não apresentam risco inflacionário e provavelmente estariam melhor caso pudessem trabalhar com moedas mais desvalorizadas. O problema é que, uma vez abandonado o euro, há o risco da desvalorização das moedas nacionais desencadear uma alta forte na inflação. Não há almoço grátis, já diria um velhinho de Chicago.

- O ponto acima levanta a questão: é possível o mundo operar sem ao menos uma referência cambial? Por um lado, talvez tenhamos mais moedas flutuando por algum tempo; por outro, é razoável concluir que tal situação levaria a uma grande tentação de fixação de taxas em razoavelmente pouco tempo. Na prática: uma nova dracma, caso gerasse inflação, seria logo fixada ao que sobrar do euro (marco alemão?) ou ao dólar, numa taxa que o BC da Grécia julgasse controlável. Só especulações, tudo isso deve estar ainda muito longe de acontecer.

- Muitos governos nacionais precisam retomar a iniciativa para reerguer suas economias (ao contrário do ambiente descrito por Judt, onde a prioridade era passar medidas impopulares sem associação direta aos políticos eleitos). Isso não é prioridade nem consenso dentro da zona do euro; mais um motivo para o arranjo atual ser contestado.

- Frase que vale ser repetida integralmente: "O surgimento de uma única moeda européia decorreu, portanto, de uma reação pragmática a problemas econômicos, e não de uma estratégia calculada e posta em prática em nome de um objetivo europeu predeterminado." Se Judt está certo e isso valeu para uma época mais ideológica, onde os fantasmas da II Guerra eram muito mais recentes, mudanças devem ocorrer no euro em pouco tempo. O "objetivo europeu", no campo econômico, teria surgido como narrativa para uma resolução de problemas práticos, e não tem sustentação própria. Atualmente, a reação pragmática tem sido "chutar a lata ladeira abaixo", esperando que os problemas se resolvam com o passar do tempo ou com medidas de austeridade que são ou pouco realistas na execução, ou que não fazem diferença dado o tamanho do problema (das dívidas). Essa reação não tem levado a nenhuma resolução minimamente satisfatória; daí, creio que é questão de tempo até o pragmatismo preponderar novamente e os problemas econômicos serem encarados a sério: ou os países problemáticos traçam uma linha de quanto estão dispostos a se sacrificar pelos credores, ou a Alemanha consegue costurar uma ampla união fiscal, consenso dificílimo de ser alcançado.

No ano passado, decretei o fim do euro justamente por achar que essa união fiscal era impossível. No início deste ano, parecia estar se formando um certo consenso, e o euro vem sobrevivendo. Nesse tempo, o problema das dívidas soberanas não foi resolvido, apareceu uma questão não trivial de capitalização dos bancos (reapareceu, na verdade, posto que não havia sido resolvida em 2008) e, cereja do bolo, a atividade econômica mergulhou e parece apontar para uma nova recessão. Não há consenso, ainda mais fracamente ideológico, que resista a tantas provações e interesses conflitantes. Evoco aqui a História não como um guia para o futuro, mas como instrumento para entender o que trouxe a situação atual e, mantida a lógica do passado (um grande "se", aí talvez abusando do papel da História), concluir que havia substância por trás do projeto de integração monetária europeu. Essa substância foi se perdendo com o tempo, e, creio, o que sobrou agora são egos de tecnocratas e políticos covardes demais para enfrentarem a realidade. Mudaram os fatos, é preciso que as pessoas mudem de opinião e ajam em função de uma nova realidade.

7 comentários:

Jorge Browne disse...

Mais um motivo para me animar a ler o calhamaço do Judt parado lá na estante...

Também gostei da parte: "O surgimento de uma única moeda européia decorreu, portanto, de uma reação pragmática ..."

Bismarck dizia que não se deve saber como as salsichas e as leis são feitas, ao que acrescentaria os planos de governo e econômicos. Tirando as primeiras tenho contato com os outros vão lá mais de 10 anos, se bem que os ditos planos são regionais pelo que soube os nacionais não são muito diferentes.
Embora urdidos dentro de um frame ideológico/político/teórico eles são basicamente uma "reação pragmática" a algum evento.
O problema de alguns teóricos acadêmicos não é a teoria e sim a academia, procura-se a "estratégia" e os "objetivos" esquecendo-se do pragmatismo da vida real, ainda que condicionado por um paradigma. Muitas vezes a estratégia só é entendida e definida como tal ex post.

Baita post a propósito, e que jamais vejamos o processo produtivo das salsichas! Porque até o cheiro dele já senti e, francamente, não é algo a ser repetido por um não vegetariano.

Drunkeynesian disse...

É isso aí, Jorge... resume-se na famosa frase "na prática, a teoria é outra".

Vale tirar o livro da estante, sim, a leitura é um prazer, eu só demorei tanto porque peguei um período sem muito tempo livre e porque de fato é muita informação pra ser absorvida.

Delfim Bisnetto disse...

Muito bom post e comentário.

Embora eu particularmente tenha estômago, e até goste, para ver como se fazem salsichas.

Jorge Browne disse...

Ok Bisnetto. Mas não me conta! hehe...

Por falar em leituras.

Vou tentar o Judt em breve, recém acabei de ler a biografia do Hitler feita pelo Kershaw, a versão condensada, que tem, acredite se quiser, 1.024 páginas. Então preciso de algo mais curto, O Pequeno Príncipe talvez...
Sério, o próximo da fila é Como os Mercados Quebram, Belluzzo falou bem dele. Como o Chancellor o autor não é economista.
Ainda tentando acabar o Estabilizando uma economia instável do Minsky (saiu em português ano passado), já tinha lido uns capítulos na época do doutorado, com um bom professor orientando a discussão. Já era difícil barbaridade, imagina agora...

Anônimo disse...

amigo a alemanha precisa tanto do euro qto a Simpatica Grecia, não fosse isso todos por lá odiariam os alemaes de tudo,e não só um pouco.

E os gregos tbm precisam duns chutes na bunda p se mexer

O euro fica, a Grécia fica, não se iluda em teorias enormes que alguns deles escrevem, a realidade é bem simples.

E se não for assim, será pior para todos.
abraço

Drunkeynesian disse...

Jorge, já li alguns artigos do Cassidy, o livro deve ser bom mesmo. O do Minsky eu tenho na estante há algum tempo, mas não deu coragem de encarar ainda. E vejo que estou escrevendo pra doutores, preciso tomar cuidado com a língua :-P

Anon, não tenho convicção de que é tão simples, não. Minha principal dúvida a essa altura é se o povo da Grécia vai aceitar o sacrifício que vão ter que fazer pra continuar no euro, não acho que seja uma pergunta de uma só resposta possível.

Jorge Browne disse...

Recomendo o Minsky com uma boa e encorpada Belgiam Ale. Fica ainda mais complicado, mas pelo menos a consciencia das proprias limitações intelectuais diminui. Vai por mim hehe...

Doutorado, pos doc, Phd... humpf, tudo muito superestimado.